Considerado uma das maiores economias do mundo, o Brasil ainda tem muito a avançar na área do Saneamento Básico. De acordo com o Instituto Trata Brasil cerca de 35 milhões de brasileiros não tem acesso à água potável, cerca de 100 milhões não tem
acesso `rede coletora de esgotos e o esgoto que é coletado um pouco mais de 50% passam por tratamento. Se não bastasse estes números vergonhosos, em média 40% da água tratada é perdida, seja em vazamentos, seja em fornecimento não faturado.
Esta situação é inadmissível para um país situado entre as 10 maiores economias do planeta. A desigualdade social da população brasileira toma forma dramática no nível educacional , nas condições habitacionais, nas oportunidades de trabalho e também no acesso à serviços de saneamento básico de qualidade.
Desde a extinção do PLANASA, que apesar de suas inúmeras críticas impulsionou o saneamento básico no país (especialmente abastecimento de água e esgotos sanitários), o Brasil demorou muito até definir uma política para o saneamento, o que somente veio a ocorrer em 2007 com a promulgação da lei federal 11.445. Na sequência a lei federal 14.026 de 2020 atualizou o marco regulatório instituindo novas práticas do setor , entre elas destacando-se a paridade de tratamento entre as empresas estatais e privadas no que concerne às concessões dos serviços.
Entretanto, nenhum desses dispositivos legais tratou da questão das áreas irregulares no meio urbano. Estas áreas são tratadas de forma diferenciada no que diz respeito aos serviços destinados a garantir o direito social do cidadão conforme estabelece o artigo 6º da Constituição federal, a saber:
“ Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela EC n. 90/2015)”
Entende-se pois, porque permite-se a instalação de postos de saúde, escolas e transporte urbano em áreas irregulares, enquanto a implantação dos serviços de Saneamento Básico fica a critério da municipalidade. E mesmo entre esses serviços, verifica-se que a coleta de resíduos sólidos e drenagem urbana são oferecidos pela administração municipal, enquanto os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário tem tratamento diferenciado.
Pergunta-se: por que esta diferenciação no tratamento dos serviços de saneamento? Porque existem dúvidas se deve-se ou não levar água potável e retirar os esgotos domésticos de populações situadas em áreas urbanas irregulares por meio de serviços de saneamento e o mesmo não ocorre com a coleta de resíduos e drenagem urbana.
Talvez uma das explicações resida no fato de que se não houver coleta de resíduos sólidos ou um sistema de drenagem urbana que funcione, toda uma coletividade será prejudicada, enquanto que a falta de sistemas de abastecimento de água potável e esgotos sanitários por meio de sistemas coletivos afetará somente os indivíduos residentes nas moradias não atendidas.
Outro argumento é que a implantação de sistemas coletivos de abastecimento de água e coleta de esgotos implicará na manutenção e fixação das moradias em área irregulares.
Em nossa opinião as duas possíveis explicações acima expostas não se sustentam pelos seguintes motivos:
1- A falta de acesso à sistemas coletivos de abastecimento de água e esgotamento sanitário além de afetar os moradores de suas residências, trará consequências para toda uma coletividade visto que poderão adquirir doenças de veiculação e/ou origem hídrica, transmitindo-as para outras pessoas, da comunidade tornando-se assim um problemas de saúde pública e
2- A carência de serviços de água e esgotamento sanitário não impede que as pessoas se mantenham nas áreas irregulares, pois sua permanência neste locais extrapola a dificuldade de acesso ao saneamento, mas outros fatores como falta de recursos financeiros para adquirir um imovel em área regularizada.
De acordo com pesquisa contratada pelo Instituto Trata Brasil e OAB e que resultou no documento sobre a situação das áreas irregulares nos 100 maiores municípios brasileiros, verifica-se que não existe uma legislação sobre políticas de investimentos em saneamento básico em áreas irregulares, sendo que cada município estabelece suas próprias diretrizes.
Não existe consenso jurídico sobre esta questão pois como informa o documento : “O legislador pouco se manifestava sobre a obrigatoriedade de fornecimento de água e tratamento de esgoto em áreas irregulares, pois há um embate do direito da comunidade irregular e do direito coletivo da população regular, envolvendo não só a prestação do serviço do saneamento, como também o dano ambiental provocado pelo assentamento em APP, que pode vir a afetar inclusive o abastecimento de água de mais de um Município”.
Ainda de acordo com a referida publicação do Instituto Trata Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)6, entende-se por assentamentos irregulares ou aglomerados subnormais, o conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais (barracos, casas etc.) carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostos, em geral, de forma desordenada e densa.
Ainda segundo o IBGE, os assentamentos irregulares ou aglomerados subnormais podem se enquadrar, observados os critérios de padrões de urbanização e/ou de precariedade de serviços públicos essenciais, nas seguintes categorias: invasão, loteamento irregular ou clandestino, áreas invadidas, loteamentos irregulares e clandestinos regularizados em período recente, favelas, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos, palafitas, entre outros. O Censo Demográfico de 2010, realizado pelo IBGE, apontou que existiam 6.329 assentamentos irregulares no Brasil, com mais de 3 milhões de domicílios particulares ocupados nesses aglomerados e onde residiam cerca de 11,4 milhões de pessoas.
Desde 2010 até hoje (2022) verificamos o empobrecimento da população, especialmente devido à epidemia de Covid19, levando um contingente populacional a sair de suas casas devido à crise econômica vindo a e residir nas ruas ou em áreas irregulares, ou seja, estas cifras devem ter piorado bastante.
Em nosso país existe portanto a cidade formal e a informal. No cálculo das coberturas de abastecimento de água e esgotamento sanitário administrados por Serviços Públicos ou Privados de Saneamento Básico, considera-se a população total do município, muitas vezes sem distinguir a zona urbana da rural. Além disso, a população urbana situada em área irregulares não é subtraída da população urbana para fins de cálculo das coberturas e deveria se-lo, pois sem a compreensão do tamanho da população que reside em áreas irregulares e portanto não podendo ter acesso aos serviços de abastecimento de água potável e coleta de esgotos, dificulta-se a definição de políticas públicas destinadas a suprir esta deficiência, sem mencionar um panorama equivocado da situação do saneamento básico nos municípios.
O Brasil já dispõe de mecanismos de levantamento dessas populações vulneráveis e negligenciadas sob todos os pontos de vista. O IBGE, o SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento), o SUS (Sistema Único de Saúde) por meio do Programa Estratégia da Saúde da Família, possuem ferramentas de levantamento de dados da situação fundiária das populações residentes em áreas urbanas. Faz-se necessário que o setor Saneamento tenha uma postura mais agressiva junto aos legisladores, no sentido de exigir uma tomada de posição técnica e política a respeito deste tema. Não é possível que continuemos a tratar das áreas irregulares como assunto periférico do saneamento básico. Entre tantos desafios que o Saneamento Básico tem que enfrentar, este certamente é um dos que merece nossa atenção e prioridade.
Denise Maria Elisabeth Formaggia
Engenheira civil/sanitarista
Membro benemérito do Comitê de Bacias Hidrográficas do Litoral Norte/SP
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